Nas ultimas décadas do século XX houve um crescente interesse pela forma como o mundo é valorizado pelos seres humanos. Alguns escritores defenderam que a atitude predatória em relação à natureza, típica do século XX, é resultado direto da doutrina cristã acerca da criação. Um excelente exemplo disso é proporcionado por um artigo bastante influente, escrito em 1967 pelo historiador Lynn White Jr., que defendia que o conceito judaico-cristão de que a humanidade tem domínio ou autoridade sobre a criação desencadeou a visão de que a natureza existe para servir as necessidade humanas, legitimando assim uma atitude altamente predatória. O cristianismo, conforme ele argumenta, possui portanto uma carga substancial de culpa pela crise atual ecológica.
Em particular, White argumenta que o cristianismo deve ser responsabilizado pela crise ecológica que surgiu, em virtude de ter usado o conceito da “imagem de Deus”, encontrado no relato da criação em Gênesis (Gn 1.26,27), como um pretexto para justificar a exploração abusiva dos recursos naturais pelo ser humano. O livro de Gênesis, conforme ele argumenta, legitima a noção da dominação humana sobre a criação, levando assim a uma exploração abusiva. Apesar de sua superficialidade histórica e teológica, o artigo teve um profundo impacto na formação das atitudes cientificas populares em relação ao cristianismo em particular, e à religião em geral.
Com o passar do tempo, uma avaliação mais acurada do trabalho de White ganhou espaço. Hoje, reconhece-se que seus argumentos possuem sérias deficiências. Uma leitura mais atenta de Gênesis indicou que temas relacionados ao “homem como administrador da criação”. Longe de ser uma inimiga da ecologia, a doutrina da criação afirma a importância da responsabilidade humana em relação ao meio ambiente. Em um estudo bastante lido, o notável teólogo canadense Douglas John Hall destacou que o conceito bíblico de “dominação” deveria ser especificamente entendido em termos de “administração”, não importando o tipo de interpretação que possa ser atribuída a essa palavra em contexto secular. Parafraseando suas palavras de uma forma mais direta: o Antigo Testamento vê a criação como propriedade do ser humano; no entanto, a criação deve ser vista como algo confiado aos cuidados do ser humano, responsável por seu cuidado e proteção. Pensamentos semelhantes podem ser encontrados também em outras em outras religiões,com diferenças perceptíveis de ênfase e fundamentação; A Declaração de Assis (1986) sobre a importância ecológica da religião pode ser vista como um marco que reconhece a importância desse assunto.
Dessa forma, a doutrina da criação pode servir como base para uma ética ecologicamente sensível. Em um estudo importante realizado na última década do século XX, Calvin B. DeWitt defendeu que é importante detectar com facilidade a presença de quatro princípios ecológicos fundamentais nas narrativas bíblicas, refletindo assim a doutrina cristã da criação.
1 O “principio da manutenção da terra”: assim como o criador mantém e sustenta a humanidade, a humanidade deve, da mesma forma, manter e sustentar a criação do criador.
2 O “principio sabático”: deve-se permitir que a criação se recupere do uso que o ser humano faz de seus recursos.
3 O “principio da fertilidade”: a produtividade da criação deve ser desfrutada, e não destruídas.
4 O “principio da satisfação e da limitação”: há limites estabelecidos para o papel da humanidade dentro do sistema da criação, com fronteiras definidas e que devem ser respeitadas.
Uma contribuição adicional foi feita por Jürgen Moltmann, notável por sua preocupação em assegurar a aplicação rigorosa da teologia cristã às questões sociais, políticas e ambientais. Em sua obra God in creation (Deus da criação), de 1985, Moltmann defende que a exploração abusiva da natureza é reflexo do avanço tecnológico e parece ter pouca relação com os ensinamentos cristãos. Além disso, ele dá ênfase ao modo como Deus habita na criação por intermédio do Espírito Santo, de forma que a espoliação da criação significa assalto a Deus. Com base nessa análise, Moltmann está habilitado a apresentar uma defesa estritamente trinitária de uma ética ecológica nitidamente cristã.
Alister E. Mcgrath. Teologia sistemática, histórica e filosófica.
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